A consternação de um crepúsculo de esperanças
Não havia muitas nuvens no céu daquele vigésimo primeiro dia de novembro. O sol se punha com toda a plenitude merecida, em uma tarde de contemplação à sua luz. Os detalhes da vastidão celestial daquele fim de tarde se prenderam tão fácil em minhas recordações pois a ansiedade fazia-me focar e estudar cada evento em meu amplo campo de visão, como um detetive e sua cena de crime, ou um legista e seu cadáver, como forma de negligenciar e distrair-me da situação posterior a que me sujeitava. Então não é espantoso eu lembrar das quatro vezes que eu troquei de camisa enquanto sentia alguns refluxos pela minha garganta. Ora, a situação permitia tal inquietação — não que fosse necessário uma ocasião extraordinária para a ansiedade atacar-me em suas veementes crises — eu estaria prestes a encontrar a primeira garota que tiraria-me a tristeza e encheria-me de esperança após tantos meses à sombra do meu desconsolo. Borrifei meus vestes três vezes com o perfume mais agradável que tinha ao meu alcance, inventei uma mentira qualquer para o meu irmão que me vira sair apressado e parti sob o limpo céu que cobria àquela tarde de primavera. A distância até o meu destino não era a das maiores — estipularia que não chegara nem a terceira centena de metros — porém, a cada passo, parecia-me que a distância aumentava de maneira progressiva. É relevante ressaltar a importância que aquela jovem tinha para mim. É inequívoco que esta troca de valia estava longe de ser recíproca, até pelo fato de ser cedo demais para maiores complacências. Porém, não era exatamente ela a motivação do meu desassossego à medida que aqueles passos me destinavam ao seu encontro, mas sim como ela me fazia sentir. Convenhamos, após uma angustiante, precoce e inesperada separação, nada ao meu redor parecia ser vívido o suficiente para causar-me algum tipo de fascínio. Parecia que a única coisa destinada a mim naquele momento seria as velhas doses de whisky, as mais lúgubres canções do Johnny Cash, lápis e papel para derramar todos os meus lamentos pela minha perda. Mas eu a conheci. E toda a minha composição de sentimentos por ela hoje baseia-se na gratidão pelos dias em que voltei a dormir sorrindo e plantando esperanças em meu sórdido coração. Ela trouxe-me felicidade, transmitiu-me a alegria que por tantas vezes a faltava, já que sua situação era bastante semelhante a minha, ambos reconstituíam-se de eternidades interrompidas. Até hoje ela não deve entender o motivo de eu a amar. Ora, precisaria de mais algumas centenas de páginas para tentar explicar algo que uma frase já é capaz de resumir. Aproximamos-nos tão depressa que fez-me temer tanta rapidez de início, mas decidir entregar-me. Não há motivos lógicos para retardar sentimentos, ela fazia-me transbordar de esperança e eu decidi parar de deixar meus antigos receios me prenderem. A minha mente mastigava toda e qualquer lembrança que eu guardava dela, e aumentava constantemente minha agitação. Faltava alguns passos para chegar ao fim da rua e eu sabia que ao virar a esquina ela esperia-me com alguma fração do meu nervosismo também em si. Conferia se a minha roupa não estava amassada demais a ponto de desarrumar-me e causar uma má primeira impressão. Então, não demorou muito após eu alcançar o fim da extensa avenida ladeirenta e enxergá-la dificilmente de longe através dos meus velhos óculos arranhados. E ela também me viu de imediato, como se já soubesse de onde viria e também estivesse inquieta pela constante aproximação de um encontro deveras esperado. Seu sorriso completara a parte inferior do seu rosto, realçara suas bochechas e comprimia seus olhos, no momento que a passos lentos e curtos caminhava em minha direção. Sua estatura era um pouco menor do que eu lembrava e esperava, mas ainda assim a declividade da calçada de asfalto nos fez parecer equivalentes em altura no nosso primeiro abraço. Antes de chegar até mim, ela já abria seus braços um pouco discretamente, como se ainda não estivesse completamente à vontade com a situação. E de primeira, fugiu o assunto da minha cabeça, e eu só pude lembrar o quão feliz eu estaria se não estivesse tão nervoso. E aos poucos, fomos distendendo, achando assunto e dando progressão ao diálogo. Recordei-me da frustração que mais cedo tive ao tentar renovar o empréstimo do meu livro na biblioteca da universidade onde estudara e a contei o quão inútil foi a minha viagem até lá para no fim saber que o departamento estava recluso naquele horário, por conta da greve dos servidores. E ao longo dos meus vagos assuntos, ela empolgava-se e também dava continuidade a nossa conversa. Enquanto dividia a atenção com cada ônibus que surgia na esquina a fim de manter o atento para seu transporte de volta à casa. Enquanto as palavras saíam por sua boca, era inútil resistir a afeição que cada traço do seu rosto me causara, bem como cada mecha de cabelo que caía sobre seus ombros relaxados. Após um tempo ela já parecia estar à vontade enquanto eu tentava não empolgar-me demais pois certamente entregar-se aos sentimentos impulsivos era uma particularidade minha, nenhum outro indivíduo são deixa-se levar tão fácil por aquilo que lhe preenche o coração. Talvez eu até tenha preenchido seu quebrado coração com esperança ou paixão, mas um pouco de racionalidade é suficiente para deixar isso restrito ao momento e não dar-lhe perpetuação. É algo que desejo veementemente aprender, a não deixar-se levar por sentimentos momentâneos, não querer perpetuá-los, por mais bem que eles lhe façam. Não demorou muito, ou talvez tenha demorado mas a tamanha empolgação não me deixou sentir o tempo passar. Seu ônibus dobrava a esquina e eu teria que despedir-me da jovem moça que fazia meu coração voltar a bater outra vez. Meus braços foram envolvendo-na aos poucos enquanto ela aproximava seu rosto do meu. Em alguns segundos, enquanto o imaculado céu de novembro escurecera sobre nossas cabeças e os carros sujavam a sonoridade do local, os nossos narizes acaraciavam-se e nossos lábios tinham seu primeiro contato. Pude sentir, com o maior prazer que poderia ter naquele crepúsculo, sua boca afagar os meus sentidos mais esquecidos, aqueles deixados para trás numa despedida que já não conseguia mais lembrar àquela altura. Poderia deixar o leitor idealizar o quão eloquente foi esse beijo de despedida, nas suas mais criativas imaginações. Mas prefiro decepcioná-lo ao revelar que tal beijo não durou mais que dois míseros segundos. Porém, na minha mente, foi guardada cada detalhe que o fazia especial. Não pelo beijo, mas sim a afável e linda jovem que eu beijava e o que ela me fazia sentir. Tive que libertá-la dos meus braços, os quais desejaria passar mais algumas dezenas de horas a envolvendo. E a vi embarcar. Mas o motivo de estar escrevendo esta composição às duas da manhã de uma sexta-feira, não é pelo quanto meu sorriso estampara meu rosto para todos na rua verem meu apreço pela felicidade naquele momento caminhando de volta para casa. Mas sim pelo que aquele ônibus levara consigo. Eu nunca mais a vi daquele jeito. Talvez ela tenha desembarcado em alguma parada alterna durante sua viagem e decidido esquecer o que havia ocorrido naquele fim de tarde. Como eu disse, não há outro indivíduo em sã consciência disposto ao devaneio de uma paixão repentina de fim de primavera, alguns corações são blindados a esta armadilha para trouxas. E não a culpo, amor é tão perigoso e destrutivo que nos transforma em bobos exauridos e é preciso sobriedade para escolher quem confiar toda esta dedicação. E não é a fugacidade de um amor de crepúsculo ou um beijo de poucos segundos que trará essa certeza. Quanto a mim, que repousei aquela noite tentando conter minha empolgação e acordei pela manhã com a tristura à minha porta, cabe a contenção dos meus sentimentos que não chegaram à ela, o aprendizado de que nem sempre a felicidade que preenche os nossos corações é aquela que nos ascende a alma e a busca pelo ponto de ônibus que aquela menina desembarcou o amor que ela parecia querer me dar.
Comentários
Postar um comentário