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Mostrando postagens de janeiro, 2017

Dispersão

Não tragas-me mais teu amor, se é que isto um dia já passou-lhe pela cabeça. Não direi-me indigno, amor nunca é nobre demais para ser recebido por um coração complacente. Tragas-me uma xícara de café ou novas ideias, quem sabe um devaneio que nunca me sujeitei. Mas não tragas-me mais teu amor. Não precisei convencer-me de que não pertencia a mim esta cortesia, poupastes-me de todo o meu trabalho e ainda que rudemente, escanteastes o apreço que sentia ao te ver. Tragas-me um problema matemático ou uma teoria astrofísica, quem sabe um bom debate político. Mas não tragas-me mais teu amor. Pereci na esperança de que estas vozes que não dormem em minha parede traziam apenas falácias, mas provei o quão amargo podes ser enquanto queimava sob o mais alto sol. Tragas-me um bom livro britânico ou uma canção acústica, quem sabe um bom filme para uma tediosa tarde de verão. Mas por favor, não tragas-me mais teu amor. 

A consternação de um crepúsculo de esperanças

Não havia muitas nuvens no céu daquele vigésimo primeiro dia de novembro. O sol se punha com toda a plenitude merecida, em uma tarde de contemplação à sua luz. Os detalhes da vastidão celestial daquele fim de tarde se prenderam tão fácil em minhas recordações pois a ansiedade fazia-me focar e estudar cada evento em meu amplo campo de visão, como um detetive e sua cena de crime, ou um legista e seu cadáver, como forma de negligenciar e distrair-me da situação posterior a que me sujeitava. Então não é espantoso eu lembrar das quatro vezes que eu troquei de camisa enquanto sentia alguns refluxos pela minha garganta. Ora, a situação permitia tal inquietação — não que fosse necessário uma ocasião extraordinária para a ansiedade atacar-me em suas veementes crises — eu estaria prestes a encontrar a primeira garota que tiraria-me a tristeza e encheria-me de esperança após tantos meses à sombra do meu desconsolo. Borrifei meus vestes três vezes com o perfume mais agradável que tinha ao meu alc...

Cotovia

Por meio da madrugada, dos frios dedos que escrevem esta carta e dos sons que a noite me traz, o desalento guarda para mim seu último voto de confiança. Eu estou perdido, tanto na vastidão do cosmo que nos envolve, quanto nos devaneios moldados pela minha mente para me atormentar. Eu não preciso desta lucidez, não basta os reais revés do meu cotidiano bagunçado, a noite sempre colhe aqueles velhos problemas que no fundo não passam de sementes que o vento esqueceu de levar. A cada minuto, a minha cabeça vira palco para a peça principal de todos os meus erros e eu me perco na plateia. Eu não preciso lembrar disso. Eu não preciso lembrar. Deixe-me sonhar, deixe-me fugir de mim apenas por uma noite. Deixe-me apreciar a sinuosidade do cair de uma folha carregada pelo vento até tocar o chão, enquanto ouço o doce som de uma cotovia. Eu quero sonhar, pois quando eu acordar, verei que tudo está uma bagunça. E todas essas incertezas que me cercam acabarão com toda a esperança que eu plantei...

Princípio da incerteza

Como mergulhar no mar para fugir da chuva, prender-se em incertezas após passar meses a mercê de uma dúvida é, na mais clichê das analogias, um tiro no pé. Ora, a vida é uma grande dúvida, desde teorias sobre origem do universo até conspirações contra a ida do homem à lua. Nada é certo ou concreto. Não conhecemos totalmente nem um grão de feijão, como Heisenberg explica com o Princípio da Incerteza, quem dera a nós mesmos ou o nosso futuro. Podemos errar, temos que errar, o erro é tão necessário quanto todas as congratulações. E não há maneira racional de permanecer em algo monótono, constante e imutável, que vive sob o receio do próximo passo. Somos feitos de próximos passos. Somos feitos de erros. Deveríamos estar fartos de esperar da vida, ou do tempo, uma resposta. Não deveríamos viver a mercê de incertezas, sem nunca perceber que nunca teremos uma certeza se não arriscarmos. Então, somos cegos que não querem andar por medo de esbarrar em alguma parede. Viva, ande, se esbarrar em ...