A tiara magenta: dê-me libertação
Desculpe-me, mãe, eu estive mentindo todo este tempo. Neste momento, eu estou a caminho de um lugar qualquer, eu ainda não sei, mas não se preocupe, eu estarei melhor que aqui se merecer. Desculpe-me, irmão, desculpe-me se te decepcionei, mas nunca esteve tudo bem, ainda que eu te respondesse o contrário todo este tempo. A vida é uma chave para a felicidade, apenas se faz necessário achar a porta onde a sua chave se encaixa. Algumas pessoas preferem jogar a chave fora e desistir. E eu não sei onde me enquadro. Eu deveria ter encontrado a porta há alguns meses e assim, distanciado-me um pouco das noites frias e silenciosas. Mas não adianta eu sair do desalento e este não sair de mim. Nestes últimos minutos, enquanto ainda há oxigenação em meu cérebro, eu descreveria a vida como um constante afogamento, com algumas tomadas rápidas de fôlego na superfície. E o que eu poderia definir melhor como o ar que entra pelas minhas narinas já não se afoga neste imenso oceano comigo. Estão caídos lá no fundo e neste momento eu estou indo buscá-los.
Na última noite eu os visitei. Começara a chover um pouco e a água que escorria pelo meu rosto era uma mistura da que caía do céu e a dos meus olhos. A pequena garota dos cabelos de luz, que há alguns dias escorregava no tapete da sala de tanto dançar e pular, fazendo questão de interromper o irmão enquanto ele jogava videogame, só para atrair um pouco a atenção dele e convidá-lo para acompanhá-la no seu breve momento de histeria, tem toda a sua esperança vívida em seus olhos resumida a um calvário frio e sem cor. As flores murchas já dão o clima de consternação do pequeno memorial. Eu fui enterrado junto a eles e morri naquele dia. Ninguém mais pode salvar a minha alma. Ela me abandonou quando a primeira pá jogava as primeiras gramas de areia sobre aquele caixão que não chegara nem ao um metro e vinte. E partiu de vez quando a última pá encobrira por completo o maior caixão dos três. Desculpe-me, amigo, desculpe-me se não te ouvi. Eu tentei lutar contra mim mesmo mas as sombras em minha parede gritavam toda vez que eu encostava a minha cabeça no travesseiro. Dê-me libertação.
Era o décimo segundo dia do mês, as dores e a vertigem, que neste período se acentuavam bastante nela, tinham motivos, mas o quanto discutimos na noite anterior cegou-me completamente. Pois, por algum motivo, dividir uma casa com alguém totalmente recluso na prisão de seus anseios, não era saudável para ela nem para as crianças. Fato é, caro leitor, que os últimos meses o meu quarto tornara-se o meu refúgio em tempos de crise. Porém, nas últimas semanas, as crises tornaram-se tão comuns nos meus dias quanto as refeições.
A ansiedade é o meu medo particular de viver, meu desespero íntimo que compõe as melhores das minhas poesias. Não precisava de motivos, ainda que ultimamente, a perda da empresa e a morte da minha mãe a energizaram mais. O que fazer quando você alcança tudo o que sempre sonhou em toda a sua vida? Eu tinha tudo o que sempre almejava nesta grande e confortável casa. Eu poderia sair do meu quarto e assistir uma animação de super-heróis com a versão de mim em miniatura, como eu sempre disse que faria. Mas há semanas o meu contato com eles se resumiam em poucas palavras durante as refeições. Antes de eu me guardar novamente no meu palácio de tristura e desesperança.
- Pai, pai, precisamos comprar o novo quadrinho do Shazam, olha que incrível. A loja do centro acabou de postar que já tem disponível. Estamos esperando por isso há meses. Podemos ir amanhã? - Disse ele.
- Sinto muito, guri, eu estou cheio de trabalhos a fazer. Outro dia nós iremos, prometo. - Expliquei-me com tristeza de vê-lo decepcionado com as primeiras palavras que saíra pela minha boca.
- É impressionante - disse ela, enquanto o garoto da franja na sobrancelha deixava o quarto, como uma notável expressão de descontentamento pela minha resposta infeliz -, você passa o dia todo sem fazer nada neste quarto e não pode levar o garoto até o centro para comprar esse maldito quadrinho que há alguns meses vocês liam juntos com tanto entusiasmo.
- O impressionante aqui é termos essa conversa todos os dias.
- E você nunca dá uma resposta. Suas explicações superficiais estão longe de serem suficientes para explicar isso.
- Eu já lhe...
- Não - interrompeu-me -, você nunca me disse, você nunca me diz nada. Eu sentei aqui todas as noites após colocar as crianças para dormir, cumprindo o papel que prometi-lhe no dia do nosso matrimônio. Estando ao seu lado em toda e qualquer situação mas não tendo nenhuma resposta que permita-me ajudá-lo. Você não percebe - continuou - mas a sua tristeza se estende a mim e aos poucos está chegando nas crianças. É compreensível o seu estado, tendo em vista tudo o que ocorreu nos últimos meses, e não é este o motivo da minha indignação. Eu estou lhe perdendo. Eu nem te conheço mais. O homem que se esconde neste quarto escuro debaixo dessa barba enorme e cabelos bagunçados não é quem eu me casei. Quem é você? O que você guarda sob toda essa frieza e desânimo? Eu nem consigo me lembrar da última vez que você se abriu para mim. É difícil te reconhecer com esta aparência totalmente despojada e nojenta. Mas é ainda mais difícil reconhecer-te por dentro, olhar para você e sentir que você é a pessoa por quem eu me apaixonei. Eu não suporto viver sabendo que posso chegar qualquer dia do trabalho e ver-te sentado sem vida com uma faca estancada no abdômen. E quando esse dia chegar, se esse dia chegar, eu perderei um desconhecido. Pois o homem que eu amava se foi há alguns meses e ainda que eu tente reanimá-lo, ele parece desejar que eu deixe-o morrer. Quando você se for, eu não vou lembrar deste homem imundo que não toma banho há dias. Eu vou lembrar da pessoa mais romântica que eu já conheci, que mesmo após anos de casado, trazia-me as rosas azuis que eu falei que amava nos primeiros dias da nossa amizade, e que ele se lembra até hoje. Eu lembrarei do garoto ansioso que eu ensinei a interagir com as pessoas e sempre entendia seus momentos de crise, pois ele recorria a mim para atenuar todos os seus momentos de desespero. Eu lembrarei do pai que parecia mais empolgado com os super-heróis que o próprio filho e usava o garoto como desculpa para não parecer tão bobo assistindo os desenhos animados durante horas vestindo a camisa do Superman. Eu lembrarei do homem que chorou ao ver a sua filha pela primeira vez e até algumas semanas atrás cuidava dela com tanto zelo e era tão apaixonado que fazia de tudo para ver o seu sorriso brilhando com os seus cabelos de luz. Eu lembrarei do homem que mais parecia uma criança chorando no altar quando eu entrei ao som de You'll Never Walk Alone. Este homem, que o seu único sonho era ter uma família ao meu lado mas hoje prefere a solidão do seu coração trancado. Eu lembrarei do tempo que você era você, um eterno apaixonado que me beijava após anos de casados com tanta veemência quanto o primeiro dia de namoro. E eu te amo por isso e por tudo que você sempre foi, mas que se perde aos poucos dentro desse cômodo.
Permaneci em silêncio por toda a longa noite. Eu estava estressado e um pouco bêbado. Sempre recorria a bebida quando as crises atacavam e agora que elas eram constantes, eu vivia com uma garrafa de vinho tinto no quarto, secando-a a cada hora. Certamente aquele discurso foi acentuado pela fragilidade que as mulheres costumam adquirir nesta época do mês. Por este motivo, eu não lhe dei tanta atenção quanto deveria. Ela passou quase uma hora discursando mas eu só consigo lembrar-me desta pequena parte. Eu a via tão histérica mas não conseguia ouvir nada, parte pela bebida, parte pelo déficit de atenção que colocara meus pensamentos longe dali por muitos minutos. Eu não falei com ela outra vez naquela noite, na manhã seguinte e, por fim, nunca mais. Ela dormiu com as crianças aquela noite e por alguns momentos levantava e ia até a cozinha gemer com a dor da cólica menstrual. A ovulação a atingia mais que comumente faz com as demais mulheres. Costumava ter tonturas e vertigem, acompanhados de forte dores. Naquela madrugada o estresse com a situação e a preocupação pode ter piorado seus sintomas. Esmurrei a parede com tanta força que sangrava as dobras dos meus dedos, caí num profundo choro que não tinha conhecimento há meses. Foi uma longa madrugada. E pela manhã, as coisas não melhoraram. Consegui dormir apenas às quatro da manhã, quando o céu já clareava aos poucos. Passei toda a noite escutando música e oscilando entre raiva e profunda tristeza.
- Eu estou precisando de você aqui, mãe. Perdoa-me por renegar a sua ajuda por todo o tempo que eu escondia-me em meu quarto e respondia com arrogância suas perguntas de preocupação. Eu era apenas um garoto, eu não a entendia. Eu nem ao menos entendia o que eu sentia. Mas só agora percebo o quanto você tentou me ajudar a esclarecer tudo. Os meus filhos foram dormir sem o meu beijo de boa noite e a minha esposa chora de dor e preocupação sozinha na cozinha. O que eu me tornei? Você está me olhando com desprezo? A minha definição de fracasso está me descrevendo e eu não sei o que posso fazer para mudar isso, eu não estou conseguindo. Eu estou andando no escuro, não há luz, e eu não vejo as pedras que estou tropeçando e caindo. Dê-me uma luz.
Relembrando esse meu desabafo, percebo que a minha esposa estava fazendo exatamente o que a minha mãe fazia quando eu era apenas um adolescente recluso. E eu repeti o que eu fiz, ainda que estivesse arrependido por fazê-lo da primeira vez.
Acordei-me assustado com o seu pulo em meu busto. E sorri, mesmo estando um pouco irritado por acordar apenas duas horas após conseguir cair no sono. O seu irmão está logo atrás, mais discreto que a pequena garota dos cabelos de luz, despedindo-se de mim, para ir à escola. A mãe deles nem olhou nos meus olhos pela manhã e ainda vendo-a com dor, não ofereci-me para levar as crianças. E eles correram para a porta ao ouvir a mãe chamar perceptivelmente estressada por conta da noite anterior, ouvi de longe a voz da garota reclamando por não poder ir no banco da frente. Eu não me despedi da maneira correta. A porta da garagem se fecha e o carro parte. Enquanto o café da manhã ainda era digerido, parei-me frente ao espelho. Eu não me enxergava mais. Eu não era mais eu. E durante a minha conversa particular que sempre costumava ter com o meu reflexo, o telefone toca.
"Vinte milhas de ninguém definem a minha visão sobre o pôr do sol. O Céu fala, mas não para mim, porque o Céu sabe que nada de bom vem de graça. Desolação e tragédia. Não há nada de bom em mim. Eu me pus para baixo."
Essa foi a primeira música da minha banda preferida que ela ouviu e se apaixonou. Dê-me libertação. Não restou nada mais a dizer. Todos estes contos não foram uma tentativa de provar que eu não sou o vilão da minha própria história e da história de outras três pessoas maravilhosas. Desculpe-me, eu me decepcionei, eu sei que não irei para o mesmo lugar que eles. Eu nem ao menos os mereço. Eu poderia fingir que a culpa é das crises de ansiedade e ter o meu momento de paz interior nestes últimos minutos. Mas três calvários não mentem. Não há mais franjas longas caindo nas sobrancelhas, nem cabelos de luz, nem cachos dourados de uma pessoa que desde que me conheceu, sempre esteve comigo. As últimas coisas ao meu lado é a primeira foto que tiramos juntos na festa da faculdade, a revista do Shazam que comprei com muito pesar alguns dias depois do carro partir e a tiara magenta que combinava perfeitamente com a cordialidade daqueles olhos cheios de vida que não se abrem mais.
Você já olhou para o limite horizonte? Percebe que independente do quanto andamos, nunca o alcançamos? Talvez seja por que limites não são feitos para serem alcançados e sempre que chegamos perto deles, colapsamos. Eu estou na beira do horizonte, finalmente o alcancei. Não há mais nada a minha frente. Dê-me liber...
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